quarta-feira, janeiro 12, 2005

A cuspidela alfacinha e o morto maputense.

Já ando há uns tempos para falar neste ponto. Porque mete nojo, arrepia-me as sinapses e "desconsigo" entender que tipo de gozo pode ser tirado daí. Cuspir para o chão, para os pés do vizinho traseunte, sabe que me acompanhou quantas vezes eu própria pisei "bisgadelas" nausiabundas. Mas permitam-me começar do início. Antes de ter visto tal acção, vim eu de África para Portugal, e duas coisas (entre outras mas hoje não!) me saltaram à vista no que toca a usos e costumes da sociedade que me encontrava a penetrar. As meias de vidro, que as minhas pernas teimaram em não gostar lá muito, sempre me fizeram parecer objecto de fisioterapia e só bem mais tarde da adolescência é que e através dos meios informativos disponíveis, filmes e demais comentários, só os franceses é que me convenceram de que se tratava de um acessório altamente sensual. Quem diria. A outra questão e aqui prende-se com questões de cultura. Tenho uma teimosa forma de olhar para as coisas que não compreendo, como sendo questões a aprofundar. No caso de Maputo, ou África dado que o exemplo que darei aqui agora seja comum a África, será o de ver mulheres a cumprirem as suas necessidades fisiológicas "leves" em pé, cheias de técnica, sabedoria e direccionadas sem que um pingo suje. Apesar de ter crescido a ver sempre me intrigou a razoabilidade. Aqui e passo a ignorância, encontrei a gaveta cuja razão me transportaria para a migração do campo para a cidade, juntamente com a falta de locais apropriados para tamanho alívio, há que arranjar solução capaz. Mas confesso que não consegui encontrar uma razão de fundo básico para a cuspidela, venha de quem vier. Vi cuspidelas de todos os tipos: saídas de um taxi, comigo lá dentro, enquanto esperava por um autocarro, em plena caminhada de ponta A a ponto B, engravatados, enquanto se esperava pela consulta médica, e na falta de chão os sagrados lenços com um também outro hábito de os abrir para confirmarmos não sei bem o quê? Consistência, cor, espessura, tipo se ranho ou escarro, tosse ou tuberculose ou a pura confirmação de que aquilo que foi sonoramente expulso pela boca, estava lá. Este foi um hábito que até hoje não me habituou nem habituará. E depois tem outra coisa simples: uma sociedade cujos efeitos higiénicos já estariam mais avançados, explicados e onde tanto falamos de respeito pelo espaço do outro, não se concebe que se veja com normalidade a cuspidela em pleno público. Falando de um outro efeito cultural que neste caso possa chocar, mas que quase será com a mesma normalidade que acontece. Quando aqui voltei e à porta do meu prédio, estava um morto. Morrido, falecido. Não enterrado. Em pleno passeio. Ía eu a pé para o supermercado e vejo pessoas a saltarem, tornearem, desviarem os seus caminhos pelo morto. Senti-me um pouco sozinha porque vejo imensas pessoas a negarem o evidente. Estava ali um morto. Será que já ligaram para se retirar o corpo do passeio? Como é possível passar-se por cima, do lado desviando sem que as expressões não mudem? Como? Os dez anos subsequentes a seguir mostraram-me como e porquê que foi possível ter visto e presenciado a indiferença tão grande pela vida.Ou a pura resignação do fatalismo do acontecimento. Seja ele de nascimento ou falecimento. Até amanhã.

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